A regeneração urbana de Estremoz
Aquando da polémica sobre o desmantelamento do núcleo museológico da CP em Estremoz, o Director deste Jornal desafiou-me a pronunciar-me sobre o assunto. Na altura disse que o faria, porém na condição de ser em "Coluna Aberta".
A verdade é que, por falta de disponibilidade, tal artigo não chegou a ser redigido. Agora, com mais tempo, podia fazê-lo mas a verdade é que também já não me apetece voltar a remexer no assunto. Existem outros temas – igualmente prementes e até relacionados – que ainda não foram, em minha opinião, suficientemente debatidos.
Prefiro, por isso, falar hoje sobre uma questão mais abrangente e que, em última instância, acaba por ser a verdadeira "culpada" pelo desmantelamento do já referido núcleo museológico: a Regeneração Urbana de Estremoz. Se bem que já não seja possível voltar atrás em matérias decididas; sempre fica o contributo, a informação, a denúncia, que talvez suscitem cuidados redobrados no futuro.
Começando pelo princípio, eu diria que Estremoz padece de um mal profundo que vive entranhado em algumas das suas gentes. Para tais pessoas, Estremoz vive empecilhada. No primeiro quartel do séc. XX o empecilho era a secção setentrional/nordeste/nascente da Muralha Setecentista. O sistema fortificado era visto como um garrote que nos comprimia o peito e nos impedia de respirar os ares da modernidade. Vinha aí o caminho-de-ferro e, com ele, o tão almejado desenvolvimento da urbe, consubstanciado com a criação, a partir de 1925, da Av.ª 9 de Abril (a regeneração urbana daquele tempo). Esqueceram os decisores da época que o caminho-de-ferro já lá estava desde 1903 e que, portanto, não foi a muralha que impediu a construção de tão importante infra-estrutura de comunicação com o progresso. Aliás, a própria Av.ª 9 de Abril podia ter sido edificada em coexistência com a muralha. Teria possivelmente ficado diferente daquilo que veio a ser, porém seria igualmente digna de receber a menção à sangrenta Batalha de La Lys, tudo isto sem destruir outros marcos históricos e civilizacionais da então Vila de Estremoz.
Um século mais tarde a tacanhez de espírito voltou a atacar-nos de forma impiedosa. Parece má sina. Agora culpou-se o balão de oxigénio do século passado, ou seja, o próprio caminho-de-ferro, pela nossa endémica falta de ar. Irónico, não é? Desta feita esqueceu-se que por esse mundo fora o que não faltam são exemplos de cidades trespassadas por carris de ferro, sejam eles o rasto dos populares eléctricos ou de metropolitanos de superfície, que não só integram convenientemente tais infra-estruturas de transporte no espaço urbano, como estas são mesmo consideradas imprescindíveis.
Como é óbvio, para Estremoz a importância da preservação do ramal ferroviário não se iria colocar ao nível das infra-estruturas de transportes urbanos ou da mera preservação de um espólio museológico que apenas alguns interessados visitaram. Para Estremoz o caminho-de-ferro seria, isso sim, uma importante infra-estrutura turística pela sua valia histórica e cultural. À imagem daquilo que já se faz um pouco por todo o lado, também não faltam exemplos de restauração de locomotivas a vapor que, atreladas a carruagens antigas, foram postas a fazer circuitos turísticos associados a percursos históricos, culturais e patrimoniais. Por regra, tais rotas proporcionam um dia diferente aos turistas, incluindo habitualmente refeições a bordo em carruagens-restaurante e conciliam as paragens para possibilitar a visita a Castelos e Palácios, a museus, a adegas, a mercados tradicionais, a oficinas de artesanato, etc. Enfim, tudo coisas que por aqui (e no termo regional) temos para oferecer. Posso não ser capaz de enumerar todos os negócios com potencial de desenvolvimento em Estremoz; sei, todavia, que entre eles estão, seguramente, aqueles que visam tirar partido dos nossos recursos turísticos.
Chegados aqui a questão que se coloca é: então não fazíamos a regeneração urbana da cidade? Claro que sim, se bem que Estremoz precisa também de reestruturação urbana. Em rigor, a verdadeira regeneração urbana deveria abranger fundamentalmente o Rossio e o Centro Histórico, revitalizando os espaços sem os descaracterizar, e recuperando toda a zona envolvente ao sistema fortificado. Sobretudo do lado nascente, Estremoz precisa muito mais de reestruturar a malha urbana do que propriamente de regenerar aquilo que ainda nem sequer existe.
Vamos por partes: o centro de Estremoz precisava efectivamente de criar uma ligação mais directa à Zona Industrial. Podia fazê-lo de duas formas:
- Pela Estação - na ausência de comboios regulares podia-se, de facto, desmantelar a maior parte da infra-estrutura ferroviária, preservando apenas as linhas principais e as torres de toma de água (das locomotivas a vapor);
- Pela recuperação da remota ligação do Rossio aos Arcos – ou seja, ligando directamente a Rua Cap. Mouzinho de Albuquerque (Telheiros) à Estrada de S. Domingos.
Esta 2.ª hipótese era claramente a mais lógica e racional. A Rua dos Telheiros está em linha recta com o arruamento existente do outro lado linha (onde fica a Adega Porta de Santa Catarina). Esclareça-se que se quiséssemos manter o sentido de tráfego na referida rua, esta hipótese era conciliável com o actual sistema de circulação pela Rua Gen. Norton de Matos (rua da Fundição Pirra e da antiga Casa Catela). Esta solução era também a mais económica: bastava demolir um pequeno armazém contíguo à antiga Fábrica do Gelo e ocupar o logradouro onde é vendido o gasóleo da Cooperativa Agrícola (mesmo ao lado do Pavilhão das Lãs). Até os separadores de tráfego já estão feitos ao fundo da Av.ª 9 de Abril. Por outro lado, nada impedia que o terminal rodoviário viesse a ser construído no espaço da actual Estação. A ligação entre a Av.ª 9 de Abril e a Zona Industrial podia ser feita sensivelmente da mesma forma que actualmente está preconizado.
OK! Admitamos agora que a remoção da linha é assunto encerrado... seriam necessárias 3 avenidas paralelas (9 de Abril, a antiga linha e o arruamento da ZI onde está localizada a Clínica Santa Isabel)? É claro que não! Os urbanistas encontrariam certamente centenas de soluções para o espaço da antiga linha entre o Monte Pistola e a Estação. Nenhuma delas incluiria certamente uma nova avenida cujas casas estão de costas para ela. Ninguém minimamente prudente iria fazer um investimento em infra-estruturas daquela envergadura (milhões de euros) num local que terá umas meras centenas de habitantes. Por vezes até parece que os nossos decisores locais se comportam como aquelas pessoas a quem nunca faltou dinheiro para esturrar, com a agravante de tais gastos serem realizados num contexto em que existem tantas carências e, por conseguinte, tantas alternativas válidas onde investir.
Antes de rematarmos este artigo com a reestruturação urbana, coloco ainda uma última hipótese: pronto, a 3.ª avenida está decidida, vamos fazê-la (por mais disparatado que isto seja). Então não deveríamos criar galerias técnicas por onde passassem águas, gás, electricidade, telecomunicações e ainda espaço para que o técnico de manutenção pudesse circular? Ou é preferível que depois da obra feita tenhamos que a esburacar outra vez para instalar o gás de cidade? E depois outra para colocar um cabo de fibra óptica? E mais uma vez para reparar uma mera rotura de uma conduta adutora? É deveras assombrosa tamanha falta de tacto.
A finalizar refiro a majestosa obra que está a ser levada a cabo desde o Pingo Doce até à Estação. Chega-se ali a um ponto, na passagem desnivelada da Rua de S. Domingos, onde nem duas carroças se podem cruzar. Imaginem se o Marquês de Pombal – num tempo de coches e charretes – tivesse projectado a baixa de Lisboa da mesma forma? Depois há outra questão: para quê? Porque havia ali uma linha e continua a haver milhões para esturrar? É que, se virem bem, não se geram quaisquer ganhos de tempo (ou outros) para aceder por ali à ZI, uma vez que têm que ir até à Estação – antes, provavelmente, terão de esperar que semáforo fique verde por baixo da Rua de S. Domingos - e dali então seguir para os restantes destinos.
Imaginem agora que a ligação do Pingo Doce ia desembocar na rotunda do Parque de Feiras; imaginem que seguiam por dentro da ZI e tomavam o destino que quisessem, nomeadamente através de ligação em linha recta até ao Modelo. Agora parem de imaginar: isso seria reestruturação urbana! As pessoas que nos governam não estão a fazer nada disso.